sexta-feira, 27 de junho de 2008

Sem medo do escuro

Ruy, Thiago, Manuela e Marco viveram o luto de diferentes perdas quando se viram frente a frente com a deficiência

Reportagem: Silvia Marangoni

Foto: Fabio Braga

Fonte: Revista Sentidos



Tiago 24 Anos

Thiago Amaral de Azevedo Sene Silva, 24 anos, viajava com amigos da escola para Porto Seguro (BA) para celebrar a formatura do terceiro ano do ensino médio. Conversavam animadamente e bebiam cerveja. "Na frente de onde estávamos havia um pier. Resolvi mergulhar de cabeça, sem perceber que ali havia um banco de areia. Horas depois, estava em um avião fretado por meus pais, que me esperavam em São Paulo. Entrei no hospital com 1,80 m e 70 quilos. Meu corpo era atlético por conta dos vários esportes que praticava. Tive pneumonia, escaras e infecção urinária." Quarenta dias depois, ao ser colocado sentado na cama, assustou-se com o que viu. "Minhas pernas tinham quase a circunferência de meus punhos. Os dentes estavam amarelados e escuros, por causa dos antibióticos. Quase desmaiei."

Durante o perído de internação, conta ter ouvido todo tipo de opiniões: "Que eu nunca mais andaria, para ter esperança pois voltaria a andar, que não teria vida sexual, que teria vida sexual. Tive de me esforçar para manter o foco."
Thiago conta que encontrou força no apoio dos pais. "Eles se revezavam em turnos de 12 horas para ficar comigo. Um ficava das 9 da manhã até 9 da noite, quando o outro assumia. Eles viveram para mim. Abdicaram até de estar um com o outro por minha causa."

Sessões de terapia o ajudaram a colocar o futuro em perspectiva. "A superação acontece quando você deixa de se ver como deficiente, aceita sua condição e passa a se enxergar como uma pessoa normal. Hoje, vivo cada dia como se fosse o último. O período de luto foi imprescindível para minha aceitação e crescimento. Só consigo falar dele porque acredito tê-lo deixado para trás. Sei que não posso esperar uma cura divina, porque a vida é agora. Nao perco a esperança na medicina, mas acredito que o benefício das célulastronco para casos como o meu será real só daqui a 15 anos."

"PROCUREI NÃO NEGAR O QUE SENTIA
"Muitos anos de psicoterapia, em várias procuras e formações (fiz formação em psicanálise, análise bioenergética e psico-oncologia, mas estudei também gestalt, terapia comportamental, terapia cognitiva, kum nyie, yoga... tudo isso antes do fuzilamento), me ensinaram a expressar os sentimentos, quanto possa - embora eu tenha também aprendido uma saudável contenção, que também é necessária na vida. O que eu sempre procurei não negar, foi tudo o que sentia. Chorava, por exemplo, nas sessões de fisioterapia, ou nos testes-diagnósticos, ao constatar que não podia movimentar os dedos do pé esquerdo, e o próprio pé. Nunca segurei esse choro, por mais que os médicos e paramédicos, muitas vezes, não soubessem o que fazer com ele. Expressei minha raiva, minha impotência, muitas vezes, xingando e chorando também. E minha tristeza. Também nunca deixei de brincar e fazer piada, mesmo as de mau gosto e que pudessem ser resultado de pura negação - que é também uma defesa saudável e necessária, ressalve-se -, quando me
ocorriam."

"Há dias em que me sinto como se tivesse sido assim a vida inteira. Mas ainda me revolto muito quando minhas limitações são tratadas com desrespeito por pessoas que, vendo minha dificuldade de andar com a bengala, se apressam para eu não ficar em primeiro lugar na fila"
RUY FERNANDO BARBOZA

"FINGIR QUE ESTAVA TUDO BEM DEIXOU DE SER NECESSÁRIO
"O luto que vivi foi profundo e intenso, com alternância de raiva, de culpa, de negação e de perda. A depressão é inevitável. Assim como a necessidade de dar resposta ao desejo de criar os filhos. Bateu um vazio enorme. Como ser pai, ensinar a andar de bicicleta, construir carrinhos de rolimã e ser alguém em quem eles confiem e se espelhem? No meio do vazio e da deprê, uma amiga disse: 'Você é o pai deles. É você que eles querem. Não existe alternativa a este fato.' Isso calou fundo. Mudei minha atitude. Enxerguei a encruzinhada: ou você se empodera e é protagonista de sua vida ou entrega os pontos e é cuidado. Neste processo, fingir que está tudo bem foi essencial. Eu ia aceitando realidades provisórias. O desmoronamento do casamento, a sexualidade, o retorno ao trabalho, a estratégia para ser pai, a dependência, a adaptação da casa, tudo foi sendo resolvido ao meu tempo, até que fingir deixou de ser necessário."
Marco Antônio, 43 anos

"Em 1993, estive na Alemanha, onde visitei uma feira de tecnologia assistiva e alguns centros de reabilitação. Ter visto, na prática, que existe vida após a deficiência oxigenou meus objetivos"
MARCO ANTÔNIO PELLEGRINI

"EU VIVIA COMO COADJUVANTE DE MINHA PRÓPRIA VIDA
Demorei para me conscientizar de minha condição. Passei dois anos preocupada em descobrir se o meu problema de saúde era um câncer de intestino. Fiz várias cirurgias, focada na descoberta do diagnóstico. Aos poucos, adquiri consciência de que as seqüelas me acompanhariam e senti o peso da realidade. Eu tinha 35 anos e minha vida, até então, havia sido exclusivamente focada em meu marido e meus filhos Thaís, de 9 anos, e Vítor, de 5. Eu não tinha metas nem sonhos. Havia me deixado para segundo plano, como coadjuvante de minha própria vida. Sentia-me no fundo do poço. A deficiência só me fez piorar. Busquei ajuda na psicoterapia. Iniciei o processo com a meta de resgatar minha auto-estima e redefinir meus objetivos e sonhos. A psicoterapia me permitiu perceber que eu precisava me reerguer para, então, ter condições de enfrentar minha deficiência."

"Quando me tornei deficiente, minha filha Thais, então com 9 anos, revoltou-se porque abandonei minhas funções de mãe. Ela viu-se obrigada a cuidar do irmão. Na época, se distanciou de mim. Hoje, nossa relação é boa"
MARIA MANUELA CUNHA

"TIVE PROBLEMAS COM AS PSICÓLOGAS QUE ME ATENDERAM
"Passei por um período nebuloso, confuso e difícil. Senti medo, impotência, culpa, raiva, pena de mim. Mandei uma carta para minha namorada terminando tudo. Aprendi a entender as pessoas que desistem da vida. Perguntava: por que eu, se há tanta gente que rouba e mata. Por que eu? Fiquei tetraplégico. No hospital, me indicaram o serviço de psicologia. Mas tive muitos problemas com as psicólogas que me atenderam. Não me lembro bem, mas acho que eram estagiárias - apenas um pouco mais velhas do que eu, que tinha 17 anos. As conversas giravam em torno da vida sexual que eu não teria e de como isso poderia afetar o relacionamento com minha namorada. Era um absurdo! Meu foco era outro. Queria saber se poderia voltar a andar. A importância que dava ao namoro, naquele momento, era igual a zero. Fiquei indignado. Me senti agredido, invadido, desrespeitado. Tudo que aquelas 3 ou 4 mulheres que me atenderam conseguiram foi me fazer desacreditar da psicologia. Fiz tudo o que pude para demonstrar minha indignação. Xinguei, fui agressivo, cínico. Não adiantou. Só trocavam de psicólogas. Até que chamei o responsável pelo programa de atendimentos do hospital e disse que não queria mais saber de psicóloga alguma."
Thiago, 24 anos

"Sou, em grande medida, refém de uma situação da qual jamais saberei o motivo de ter sido escolhido. Não culpo o destino (não acredito nele). Tenho consciência de que, no dia do acidente, estava bêbado e fiz algo extremamente arriscado"
THIAGO SENE SILVA

Manuela 50 Anos

Maria Manuela Alves da Cunha, 50 anos, portuguesa que vive no Brasil desde os 18, tem tetraparesia espástica (tensão muscular acentuada dos membros inferiores e superiores). Uma bactéria corroeu a mielina, que é responsável pela transmissão dos impulsos elétricos do cérebro para o corpo. "Caminho com andador, mas não perdi a sensibilidade dos membros. Apenas não tenho firmeza. Preciso travar os joelhos para andar, e me apoiar. Os movimentos que dependem de coordenação motora fina ficaram prejudicados, mas mantenho a força dos braços com ajuda de fisioterapia", conta.

Uma série de complicações de saúde depois disso e diagnósticos desencontrados a deixaram fragilizada a ponto de querer voltar para casa. Lá, foi diagnosticada como tendo doença de Addison - insuficiência adrenal aguda de base auto-imune que reduz os níveis de cortisol, o hormônio responsável por regular o organismo após situações de estresse. "Quando voltei ao Brasil, assumi um compromisso comigo: comecei a investir, a sonhar e encarar a deficiência de frente. Até então, menosprezava minha condição. Comecei a dirigir um carro adaptado, o que tem influído em meu processo de melhora. Reconquistei minha autonomia e isso me animou. Retomei minha rotina. Em compensação, meu casamento, que já não andava bem, ruiu. Meu ex-marido não lidou bem com minha autonomia. Estive casada por 22 anos. Estou separada há quatro. A decisão foi mais ou menos conjunta, porém partiu de mim. Descobri que ele me traía." Apesar do medo de ficar sozinha, ela conta ter bancado a decisão. Aos poucos, descobriu que estar só contribuiu para seu crescimento pessoal.

"Voltei a sonhar, a cuidar de mim. Resolvi até fazer uma faculdade. Hoje, curso o primeiro semestre de biblioteconomia na UNIFAI (Centro Universitário Assunção), em São Paulo. É um outro desafio em que estou me saindo muito bem. A relação com os colegas é muito boa."

Marco Antônio 43 Anos

O metroviário Marco Antônio Pellegrini, 43 anos, formado em matemática e pós-graduado em tecnologia assistiva, ficou tetraplégico (C3/C4) em 1991, também em conseqüência de um tiro de arma de fogo. Ele, que atua no departamento de recursos humanos do Metrô de São Paulo, na área de Responsabilidade Social, também é diretor das ONGs Centro de Vida Independente Araci Nallin (CVI-AN) e Amigos Metroviários dos Excepcionais (AME). "Restaram-me apenas movimentos de pescoço", conta. "Uso cadeira de rodas motorizada com joystick no queixo e digito com um apontador na boca ou direto no PalmTop." Sobre o acidente, conta que era uma noite de julho e ele estava de férias curtindo uma moto que comprara. "Bateu um incômodo, um sentimento de perigo iminente, interrompi o passeio e voltei. Mas fui abordado na porta de casa. Em frações de segundo tive de decidir: Estão armados? Um trezoitão e dois caras. Dou a moto? Dei. Xiiiii, não foram embora! E meu filho na janela. Deixo que entrem? Fui pra cima. Pancadas na cabeça e, olho no olho, dois tiros. Desmontei sobre os joelhos e senti um forte cheiro de queimado. Eram minha carne e ossos das vértebras que romperam e queimaram por causa do disparo à pequena distância. Perdi a noção do tempo. Talvez por 10 segundos. É louco: tudo rápido e, ao mesmo tempo, muito lento. Fiquei 'adrenado' e com a consciência exacerbada. Passei telefones de amigos e do convênio, discuti no pronto-socorro com o auxiliar de enfermagem que não queria cortar minha roupa para me despir sem estragá-la. Um policial entrou na sala, olhou-me e disse 'Mandei um pro saco'. Não me trouxe conforto. Acho que naquele instante comecei a perceber o tamanho da encrenca.

Pellegrini conta que ficou cerca de quatro meses hospitalizado. "Quando saí, visitei centros de reabilitação tradicionais em busca de vaga. Tinha uma escara enorme em um momento que a técnica corretiva era de enxertos demorados e frágeis. Os programas de reabilitação funcionavam como hospital-dia, então percebi que a vida ia estacionar. Soltei dentro de mim a palavra libertadora: f..., vou seguir assim mesmo. Durante os 17 anos em que vivo nesta condição, tive muitos prazeres e conquistas: as apresentações de final de ano dos filhos (que só os pais e avós aguentam), formaturas, aniversários, natais e reveillóns, noitadas, verões na praia, paqueras, o papo furado com os bons amigos, superar metas no trabalho, concluir cursos..., os romances, o casamento, vinhos, a troca de casa, reformas da casa, shows, curtir New Orleans, Dusseldorf e Baviera. Perder tudo isso é impensável. Querer apontar de quem foi a culpa não muda nada: desastres acontecem... e passam."

Ruy 60 anos

Quando a ficha cai, não há como se fazer de forte. Você, agora, possui uma deficiência. E ela vai acompanhá-lo pelo resto da vida. Primeiro, vem a perplexidade. "Por que eu?" Depois, a sensação de haver sofrido uma condenação - sem motivo aparente ou aviso prévio. Quer acordar do que tenta convencer-se ser um pesadelo, mas é cada vez mais tragado pela consciência de sensações novas que preferia não estar vivendo. Medo. Dor. Revolta. Incerteza. Começa a enumerar coisas que fazia e não poderá fazer nunca mais. Se pega duvidando que valha a pena viver e sente impulso de entregar-se. Chora. Ou não. Enfim, encara a verdade: sua vida mudou. E percebe que precisa decidir como quer vivê-la de agora em diante. A esse processo, do qual ninguém escapa, se dá o nome de luto. Histórias de quem já passou por isso, como as mostradas nesta reportagem, podem ajudar a atravessá-lo.

O psicólogo Ruy Fernando Barboza, 60 anos, também advogado e jornalista, perdeu o movimento da perna esquerda - abaixo do joelho - por causa de uma bala perdida. Um tiro de fuzil, recebido na Linha Amarela, no Rio de Janeiro, em 2002. Havia um mês que Ruy trocara viver em São Paulo por Florianópolis. Ele, que faria conferências no Congresso Brasileiro de Psico-Oncologia, em Olinda, desdobrou a passagem Floripa-Recife para passar o fim de semana no Rio. "Havia um tiroteio entre traficantes", relembra. "Era meia-noite. Meu filho André dirigia o carro, e eu estava sentado atrás dele. Ao meu lado, minha ex-mulher, Maria Elisa, e ao lado dele, na frente, Taissa, a namorada. A bala perdida de um fuzil AR15 atravessou a lateral do carro e o meu quadril, ficando alojada (até hoje) na coxa direita." O projétil destruiu parte da cabeça do fêmur, o osso púbico, 10 centímetros da uretra, um pedaço da próstata e seccionou os dois ramos do nervo ciático. Ruy sofreu nove cirurgias para fixar uma prótese (placa e pinos) no fêmur, reconstituir a uretra e receber um enxerto nervoso nos dois ramos do ciático. "Foi uma tentativa de propiciar alguma recuperação de movimento ou de sensibilidade na perna esquerda, que não deu em nada. Não tenho movimento nem sensibilidade nessa perna, do joelho para baixo, a não ser numa pequena faixa na área lateral interna, que é sensível ao toque. Além disso, fiquei com pouca sensibilidade em outras áreas do períneo e da perna, tive embolia pulmonar - porque fiquei também com uma trombose venosa profunda na perna esquerda -, tenho dores que me impedem de ficar em pé muito tempo e outras que tornam incômodo também ficar sentado." Estilhaços microscópicos da bala na perna ocasionam a formação de granulomas, abscessos e infecções, tornando necessárias novas cirurgias para drenagem e limpeza. "Fiquei muitos meses sem andar. Aos poucos, graças a muita fisioterapia, fui saindo da cadeira de rodas para usar um andador, e, depois, muletas. Hoje uso bengala. Consigo dirigir (carro automático, é claro), ando mancando e me desequilibro com alguma freqüência, embora tenha caído poucas vezes." No caso de Ruy, as seqüelas do acidente geram uma sensação recorrente de que o pesadelo de seis anos atrás ainda não acabou.

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